A Pêro Andrade de Caminha - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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A Pêro Andrade de Caminha
Teu nome, Andrade, de qu'é bem qu'esperem
O de que se já sempres espantaram
Quantos te vem, quantos depois vierem:
Teu raro esprito, de que se honraram
As Musas, que de si tanto te deram 2,
E que tarde outro como a ti darão:
Os bons escritos teus, que mereceram
Ou ouro, ou cedro, pois já nessa idade
Nos mostras neles , quanto em ti quiseram
As Musas renovar a antiguidade,
Em teu amor aceso me levaram
A esta sã, e confiada liberdade 3,
Do que se antigamente mais prezaram
Todos os que escreveram, foi honrar
A própria língua 4 , e nisso trabalharam.
Cada um andava pola mais ornar
Com cópia 5, com sentenças, e com arte,
Com que pudesse d'outras triunfar.
Daquela alta elegância quanta parte
Deves, tu Grécia, àquele tão louvado
Poeta 6 , que assi soa em toda a parte!
E tu grã Tibre 7, de que estás honrado
Senão com a pureza dos escritos
Daquele Mantuano 8  celebrado?
Garciliasso, e Boscão 9, que graça e espritos
Destes à vossa língua, que Princesa
Parece já de todas na arte, e ditos! 10
E quem limou assi a língua Francesa
Senão os seus franceses curiosos
Com diligência de honra, e amor acesa?
E vós ó namorados, e engenhosos
Italianos, quanto trabalhastes
Por serdes entre nós nisto famosos!
Assi enriquecestes, e apurastes
Vosso Toscano 11, que será já tido
Por tal, qual para sempre o vós dixastes.
Qual será aquele povo tão perdido
Que a si não seja mais afeiçoado
Qu'a outro estranho, e pouco conhecido?
Que bárbaro não diz: "mais obrigado
Sou eu a aproveitar a mim, e aos meus,
Que àquele, que de mim está arredado?"
Getas, Arábios, Persas, e Caldeus,
Gregos, Romãos, e toda a outra gente
Nascem, vivem, e morrem para os seus.
Havermos nós agora a um excelente
Capitão Português de quantos temos,
De que se espanta, e treme o Oriente,
Querer mostrar a ordem, que devemos
Guardar na guerra em língua estrangeira,
Quão certo, Andrade, é que nos riremos.
"Este, dirias, em vez da maneira
Nos querer ensinar como vençamos,
Faz outra gente contra nós guerreira."
E tanto é mais razão que o nós sintamos,
Quanto maior proveito nos cabia,
E quanto mor o dano, que esperamos.
O que entre a antiguidade mais se havia
Por infâmia, era desprezar a terra,
De que um era filho, e em que vivia.
Contra a qual não somente se diz que erra
O que desemparar, trair, vender,
Ou lhe mudar a boa paz em guerra,
Mas quem com quanto dizer, e fazer 12,
Em seu proveito pode, o não fizer,
Ou seja com bom braço, ou bom saber.
Duas coisas somente se hão mister 13
Na República boa, corpo, e alma.
Ditosa aquela, que ambos bons tiver.
O corpo, que por ferro, frio, e calma
Rompa, e passe sem temor avante,
Porque o imigo lhe não leve a palma.
A alma, que seja tão pura, e constante
Em seu proveito, e honra, que pareça
Ter sua glória, e bem sempre diante.
E que na paz, e guerra se ofereça
A com prudência, e conselho a ajudar.
Porque chamar-se filho seu mereça.
Por isso o grande Deus nos quis formar
Por suas santas mãos de carne, e esprito,
Porque de ambos havíamos de usar.
Quem com armas não pode, com escrito 14
Poderá fazer tanto, que se ria
Do qu'os escadrões rompe, e inda c'um dito.
E não se honrava mais, e mais temia
Aquela vencedora Esparta antiga
Cós ditos de Licurgo 15, que a regia,
Que dês que ela das armas, e ouro amiga
Os olhos lhe quebrou, e o desterraram?
Pátria contra si mesma ingrata, e imiga,
Ó quantos mor fama ganharam
Com a boa pena 16, que outros com a espada!
Quão mais ricas estátuas cá deixaram!
Quanto foimais sentida, e mais chorada
A morte do alto Homero por seu canto,
Que a tua, Aquiles 17, que ele fez honrada!
Pois com quanta razão m'eu mais espanto
Do que em ti vejo, tanto ver perdido
Sinto, o que me assi move a mágoa, e espanto.
Mostraste-te tégora tão esquecido 18
Meu Andrade, da terra, em que nasceste,
Como se nela não foras nascido.
Esses teus doces versos, com que ergueste
Teu claro nome tanto, e que inda erguer
Mais se verá, a estranha gente os deste.
Porque o com que podes nobrecer
Tua terra, e tua língua lho roubaste,
Por ires outra língua enriquecer?
Cuida melhor que quanto mais honraste,
E em mais tiveste essa língua estrangeira,
Tanto aa esta tua ingrato te mostraste.
Volve pois, volve, Andrade, da carreira,
Que errada levas (com tua paz  19 o digo)
Alcançarás tua glória verdadeira.
Té quando contra nós, contra ti imigo
Te mostrarás? Obrigue-te a razão
Que eu, como posso, a tua sombra sigo.
As masmas Musas mal te julgarão,
Serás em ódio a nós teus naturais,
Pois, cruel, nos roubas o que em ti nos dão.
Sejam à boa tenção obras iguais,
E a boa tenção, e obra à pátria sirva,
Dêmos a quem nos deu, e devemos mais.
Floreça, fale, cante, ouça-se e viva
A Portuguesa língua 2o, e já onde for
Senhora vá de si soberba, e altiva.
Se téqui esteve baixa e sem louvor,
Culpa é dos que a mal exercitaram:
Esquecimento nosso, e desamor.
Mas tu farás, que os que a mal julgaram,
E inda as estranhas línguas mais desejam,
Confessem cedo ant'ela quanto erraram.
E os que depois de nós vierem, vejam
Quanto se trabalhou por seu proveito,
Porque eles para os outros assi sejam.
Se me enganei, se tive mau respeito,
Andrade, tu o julga: mas espero
De te ser este meu desejo aceito.
E em quanto mais não peço, isto só quero.
 
«Cartas» in Poemas Lusitanos


Elogio de Pêro Andrade Caminha: Neste poema, o sujeito poético aconselha-o a escrever em língua portuguesa, dando exemplos de autores clássicos e estrangeiros que se orgulharam de escrever na(s) própria(s) língua(s). Censura-o e exorta-o a mudar de procedimento, fazendo o louvor da língua portuguesa.
As musas inspiraram-no a imitar os autores greco-latinos, transpondo-os.
A amizade e a confiança que António Ferreira tem por/com Pêro de Andrade Caminha dão-lhe liberdade (à-vontade) para o censurar.
Aconselha Caminha a escrever em língua portuguesa, enriquecendo-a, por ele ter escrito muito em castelhano.
Cópia: abundância.
Como exemplo, apresenta a valorização da língua grega (do grego) feita por Homero.
Grã Tibre: Roma. Sinédoque muito usada no Renascimento: o rio pela nação.
Virgílio.
Garciliasso e Boscão: introdutores da Escola Italiana em Espanha.
10 Ditos: conceitos, sentenças.
11 Toscano: dialecto em que escreveram Dante e Petrarca e donde provém o italiano actual.
12Dizer e fazer: falar e escrever em português é tão próprio do bom português como praticar actos patrióticos.
13Se hão mister: se precisam.
14Com a escrita pode fazer-se tanto como com as armas.
15Licurgo: considerado, pela tradição, o legislador de Esparta.
16A «boa pena» pode dar mais fama que a «espada» (letras e armas).
17Aquiles: foi cantado por Homero na Ilíada.
18Censura a Pêro Andrade Caminha.
19Com tua paz: latinismo, com tua permissão.
20Versos cheios de emoção que viriam a ficar como emblema do louvor à língua portuguesa.

Fonte

Castro e Poemas Lusitanos, col. Verbo Clássicos, Lisboa, Ed. Ulisseia e Editorial Verbo, 2006, pp. 170-175.

Sobre o autor

António Ferreira (Lisboa, 1528 - 1569), escritor e humanista português. É considerado um dos maiores poetas do classicismo renascentista de língua portuguesa, conhecido como o Horácio português. A sua obra mais conhecida é uma tragédia, Tragédia de Inês de Castro.