Arminhos de folha corrida - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Arminhos de folha corrida

Portimão–Outubro–1901

Li com agudíssimo prazer a sua última carta e compadeci a dor das suas melancolias, atenuando-a na experiência do lírico:

—...que não há ninguém,
que possa sofrer um mal,
sem se alembrar de algum bem...

Ainda é do melhor que nos resta essa faculdade de forragear nas próprias mágoas, agora que a nossa mãe espiritual – para mim renegada – a França entendida, vai dançando rondas oficiais em volta da estátua do Paulo de Kock [***]. Estercorária gente! Mas tornando ao que me escreve. Reparo sobretudo no seu desalento literário quando – e digo-lho convencidíssimo – ninguém com mais fundamento do que o meu amigo pode pretender à expressão exacta dos sentimentos requintados e das impressões cromatizadas dos seus contemporâneos. E no que é propriamente a sua essência de artista cativam-me as cintilações de um espírito no qual tudo se refrange em cores ardentes ou se exala em labaredas de volúpia... Eu gosto das arestas e dos relevos da sua prosa: é viva. Nela repouso da fadiga subsequente à leitura daqueles habilidosos que desossam a linguagem e a cozinham com tal arte que lhes sai o estilo em geleia. E depois vêm os manes do grande Vieira a coçar de enfiados as moleirinhas, tão catita é o boleio que julgam ter dado à prosa babada...

É bom ter escrúpulos, mesmo quando há engenho bastante para, sem mais esforço, envernizar velharias, insuflando-lhes de pronto manhas novas – corrente processo artístico dos mais aplaudidos –, e é bom ter escrúpulos especialmente para discriminar o que nos pertence e dizê-lo seja como for... Mas compreendo muito bem essa dolorosa incerteza em cérebro de ascendência latina... Reflita e console-se. Hoje é pretensão vã aspirar à plasticidade dos antigos – não que eles não escrevessem como queriam e entendiam e que não esteja averiguado que, verbi-gratia, nunca existiu o "latim literário" com o qual nos embaíram – mas a simplicidade das ideias, junta à ingenuidade das imagens, facilitava a euritmia dos períodos. A esta nossa existência inquieta e à hiperestesia que nos tortura e quase nos diviniza nenhuma forma arranjada quadra. A prosa desarticulada e doida, sem exclusão até dos exercícios claunescos de um Mark Twain!... De resto o estilo não é e talvez nunca fosse mais do que a tendência constante para uma perfeição pessoal, a exclusiva maneira, rude ou elegante, de exprimir que satisfaça o escritor...; e quem nada tem que dizer também não tem estilo algum... Por isso eu nunca pregaria revoluções artísticas – tão conforme estou com todos os géneros, ainda os mais contraditórios ou heterodoxos, quando me sensibilizem, como se diz no já ferrugento chavão –, além de me parecer que pregar "estética" será pregar eterna e desesperadamente em deserto inóspito...; mas o assunto é encantador para íntimas palestras! E muito à puridade lhe direi quanto se me afigura condenável que as regras ponham estorvo ao apreço de qualquer talento... Cuido até que um talento pouco literário pode ser mais proveitoso à riqueza da língua do que o mais ponderoso e versado humanista. Não faltam exemplos históricos de línguas empobrecidas por excesso de claridade e ressecadas à inclemência dos preceitos infrangíveis, que necessitaram de muita "corrupção" para desferir na íntegra a gama dos meios-tons, onde a cor se conjuga ao sentimento, e, despegada a ideia da rigorosa propriedade dos termos, fermentaram em frases iriadas que, alargando a vida, sugerem sensações inefáveis... Em geral a "corrupção" não vai além dos alisados rebocos, e severas escaiolas mercê das quais os espíritos gregários sequiosos da disciplina grata à pânria académica ousaram mascarar as formas libérrimas, ou tentaram empecer os movimentos do organismo activíssimo que uma língua viva constitui...

Mas o nosso país é excepção a todos os mais e bem podemos, caro amigo, abendiçoar a sorte que nos fez portugueses... Sem literatura de espécie alguma, nem boa, nem ruim, nem aberrativa, nem moral – singular caso de desagregação onde gorgulham literatos –, é o campo sonhado para luzir todas as audácias; podem-se lançar à terra quaisquer sementes que a sua vegetação nunca tolherá o passo seja a quem for... O poeta contempla-se no gesto lindo de as espalhar e vem muitos anos depois encontrá-las tais quais as deixou e tão bem conservadas que, se quiser, as recolhe de novo para as levar consigo à sepultura... É um país onde anteriormente ao soneto do Baudelaire "Correspondências" o Castilho das maviosíssimas prosas escrevia sem sobressalto para ninguém: "o A é brilhante e arrojado; o E ténue e incerto; o I subtil e triste; o O animoso e forte; o U carrancudo e turvo. Se ousássemos não temer o ridículo compararíamos o tom do A à harpa; o do E ao machete; o do I ao pífaro; o do O à trompa; o do U ao zabumba." Isto já corre mundo passa de meio século sem causar o mínimo alvoroço; na população francesa de hoje ainda os versos de Rimbaud:

"A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu, voyelles,
Je dirai quelque jour vos naissances latentes." [****]

produzem mais estragos do que os cães marfados... Como não exista entre nós o corpo compacto de uma literatura mais ou menos autóctone e consistente, excrementando oficialmente para o público, este sucumbiu de inanição e já se pulverizou... Assim os nossos homens de letras, mesmo os matriculados e autenticados, vivem no isolamento astral, alumiando uns para os outros, sem mais intuito além de conseguir que lhes reconheçam títulos suficientes à gerência da "Vernaculidade" e com mil filaterias judaicas insinuam, à míngua de provas artísticas, em críticas autobiográficas, a supremacia dos seus respectivos talentos – pulcritude nas boas contas, arminhos de folha corrida e preservativos de catecismo –, estiando-se nos louvores interesseiros de outros engenhos igualmente primazes... Para acentuar o cunho de tradicional lusitanismo aparecem ainda à antiga, quase transparentes, forrados por sobrecasacas puídas, a palitar os dentes, não dos restos de saborosos acepipes, mas somente das musgosas vegetações que rompem no empedrado das calçadas por onde nada passa...

Quando o grande Camilo os almofaçava é que se podia ver quanto eles valiam... Mas o grande Camilo também, e a miúdo, se socorria nada airosamente do pretexto da "Vernaculidade", já nas injustiças da louvaminha frutuosa ou complacente, já na crueza das flagelações acintosas... Fora da "Vernaculidade" estarrecida no terror perpétuo dos barbarismos e dos solecismos e cada vez mais gelada mau grado as carícias dos simiescos adoradores que ela emascula, a Vida entumesce e rola impetuosa, comovente, caudalosa, numa torrente inflamada de expressões coruscantes onde a língua eternamente se retempera... Na torre da "Vernaculidade" as urnas onde se guarda o tesouro da língua regurgitam de pedras falsas ou que, pelo menos, se despoliram e perderam o brilho como turquesas cloróticas e o que há ainda a admirar na indigência estética do nosso torrão é a obra de alguns raros espíritos que dela se evadiram ou a ela escaparam, como o generoso esforço de quem evolucionou das juvenis truculências líricas de um sublime romantismo, na "Morte de D. João", até à síntese leonardesca da "Canção Perdida" [*****] ou esses trechos de prosa onde ao aflar da mais estonteadora fantasia a carne e o sangue do Fialho palpitam com toda a excelência da sua luxúria... Eu desejaria que a "gente nova" indiferente à "Vernaculidade" deixasse os seus bonzos entorpecer em paz, pois lhe não compete curar da sua higiene; convém-lhes fugir à sorte das pobres meninas submissas que vão desgrenhadas e ainda estrovinhadas, matinalmente (ou nocturnamente) aparar as unhas dos fétidos pés de seus grosseiros pais que já mercadejaram nos sertões africanos e graças ao engodo das riquezas nunca partilhadas as vão estiolando e tiranizando com preceitos odiosos (…)

*** Escritor francês de origem holandesa (1793–1871).
**** Tradução livre :«A negro, E branco, I vermelho, U verde, o azul, vogais,/
    / Eu direi um dia o segredo da vossa origem. » – J.C.B.
***** Do poeta português Guerra Junqueiro.
 
Fonte

Título da responsabilidade de Ciberdúvidas. Excerto do livro "Agosto Azul", Obras Completas de M. Teixeira Gomes, Bertrand Editora, 1986. Carta ao poeta e político português Henrique de Vasconcelos (1876–1924).

Sobre o autor

Manuel Teixeira Gomes (Vila Nova de Portimão, 1860 – Bougie, Argélia, 1941) foi Presidente da República de Outubro 1923 a Dezembro 1925, ano em que renunciou ao cargo. Justificou esta renúncia com o pretexto de se dedicar exclusivamente à literatura, interesse que anteriormente já havia demonstrado, ao colaborar com revistas e jornais, entre eles O Primeiro de Janeiro, Folha Nova e Arte & Vida. Este seu interesse levo-o a criar uma considerável obra literária da qual fazem parte títulos como Cartas sem Moral Nenhuma (1904), Gente Singular (1909) e Carnaval Literário (1938).