Traduzir - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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«Seria elementar para uma ecologia das línguas não prescindirmos de pensar e escrever cada um na sua língua natal, repudiando subalternidades e hegemonias culturais.»

 

A fidelidade exprime mal o que está em causa no trabalho da tradução. O que não é traduzir e trair até na mais elementar expressão de pensar? No seu ensaio A tarefa do tradutor, Walter Benjamin contrapôs outra perspectiva, em que traduzir é tornar a formar o eco da obra original. E nessa tarefa damos ao manifesto o corpo linguístico que temos, para articular a partir das nossas experiências a expressão das experiências do outro.

Paul Ricoeur falava de uma hospitalidade «em que o prazer de habitar a língua do outro é compensado pelo prazer de receber em sua casa, na sua própria morada de acolhimento, a palavra do estrangeiro».

É mesmo um assunto de corpos. Ao contrário de uma assimilação, digerir a substância do outro, o tradutor oferece a sua casa habitada, corpos e braços distendidos, mãos e dedos, para formar sentidos estrangeiros.

Esse é um dos encantos de Drive My Car, o filme de Hamaguchi, a partir de um conto de Murakami. Nele, encena-se o Tio Vânia de Tchekov, mas com cada actor a falar na sua língua materna, todas asiáticas, e uma actriz surda-muda a interpretar Sónia. É difícil encontrar registo mais belo do monólogo de Sónia diante do seu tio. Uma escuta silenciosa de gestos em volta de Vânia dissolve todos os desentendimentos e infidelidades num corpo comum.

Traduzir é esta experiência de convívio incomparavelmente mais marcante do que tolerar. A tolerância é só o grau zero da aceitação do outro, aceite o seu direito a estar, sem envolvimento entre os que estão. Eduardo Lourenço chamava-lhe «idolatria da indiferença» em O Esplendor do Caos.

Exige-se muita tolerância nos nossos tempos e, no entanto, vai faltando motivo de tradução. Perde-se diversidade linguística como se perde biodiversidade. E cada língua materna que se extingue era uma visão de mundo, uma história do mundo. 90% das línguas podem desaparecer ao longo deste século. É uma extinção em massa da própria massa que faz a humanidade.

A língua inglesa não é hoje apenas língua franca, como terá sido o latim até tão depois da queda de Roma. O seu predomínio é um aspecto desta monocultura que infesta todos os campos da existência.

Seria elementar para uma ecologia das línguas não prescindirmos de pensar e escrever cada um na sua língua natal, repudiando subalternidades e hegemonias culturais. Um planeta repleto de línguas não significa mundos fechados, mas que se podem atravessar. Traduzir é esse trabalho ecológico, corporal e convivial, de atravessamento de significados e lugares de pertença.

Fonte

Artigo publicado no suplemento Ipsílon do jornal Público, em 8 de março de 2024. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.

Sobre o autor

Filósofo de formação, é professor na Universidade da Beira Interior, onde desenvolve ciclos de estudos na área da Ciência Política.